NatGeo #220 | Pauliceia Palestina

A guerra fez com que milhares de palestinos abandonassem os campos de refugiados na Síria. Em São Paulo, essa nova onda de imigrantes reforça uma crescente comunidade muçulmana.

Por Kevin Damasio | Fotos de Giulio Paletta
National Geographic Brasil #220, julho/2018

Muna Darweesh, de 37 anos, aproveita o domingo para descansar no sofá ao lado do marido, Wessam Al Jammal, de 45. Eles assistem a um programa de TV árabe enquanto os quatro filhos brincam pelo pequeno apartamento. “Quando conto a minha história”, diz ela, “eu sinto algo profundo no coração. Esse sentimento de saudades do lar vem desde a fuga da nossa família para a Síria. É algo que também marcou a vida da minha avó e da minha mãe.”

Muna e Wessam integram uma nova geração de muçulmanos no Brasil. Filhos de palestinos refugiados na Síria depois da criação do Estado de Israel, em 1948, ambos nasceram em campos administrados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês). Mesmo no exílio, as coisas andaram bem. Wessam formou-se em engenharia na Universidade de Alexandria, no Egito. No trabalho, viajava bastante para atender aos contratos de uma empresa de navegação. Em Latakia, na Síria, Muna estudou literatura inglesa e tornou-se professora.

Então, em 26 de janeiro de 2011, uma série de protestos contra o regime de Bashar al-Assad eclodiu a guerra civil na Síria, na efervescência da Primavera Árabe. Em agosto, Latakia foi cercada pelo Exército. Acuados, 5 mil dos 10 mil palestinos fugiram do campo de refugiados.

A família Al Jammal permaneceu na cidade, mas o cotidiano ficou insustentável, com cortes de energia elétrica e escassez de comida. Quando os Estados Unidos anunciaram um bombardeio à cidade controlada por Al-Assad, em 2013, Muna voou para Alexandria, acompanhada dos filhos pequenos e outros vizinhos. Wessam cancelou um contrato em Dubai e foi ao encontro da família. Mas eles tiveram a residência negada no Egito, da mesma forma que a entrada em países como Turquia, Arábia Saudita, Líbano e Jordânia. “Os palestinos da Síria possuem um passaporte especial que não permite a entrada em nenhum outro país árabe”, explica Muna.

Em setembro daquele ano, a esperança ressurgiu para os Al Jammal com a notícia de que o governo do Brasil passara a conceder visto humanitário a quem fugia da guerra na Síria. Com isso, em novembro, a família desembarcava no Aeroporto Internacional de Guarulhos.

A chegada dos primeiros praticantes da religião de Maomé ao Brasil remonta ao período colonial. Nos navios portugueses que deixavam os portos de Benin para traficar negros africanos, vieram também os ensi- namentos do Islã, que se propagaram, sobretudo, em centros urbanos brasileiros. Os muçulmanos ficaram marcados por protagonizar manifesta- ções que combatiam o sistema escravocrata. Uma das mais famosas, em 1835, foi a Revolta dos Malês, pela libertação de servos islâmicos.

Durante a Primeira Guerra Mundial, quando o Império Otomano se aproximava do fim, uma grande onda de sírios e libaneses veio ao Brasil. Em São Paulo, a Mesquita Brasil, a mais antiga da América Latina, foi construída em 1929. Ao longo do século passado, conflitos no Oriente Médio – entre eles a guerra do Líbano de 1982 – também impulsionaram esse fluxo migrató- rio. No Censo de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levantou um total de 35 mil muçulmanos no Brasil. Esse dado oficial é contestado por entidades islâmicas, que acreditam em um número bem mais alto. No estudo “O Futuro das Religiões no Mundo”, o Centro de Pesquisa Pew projeta um crescimento de 13% da população muçulmana na América Latina e no Caribe em 2050. Com dados oficiais de 19 países da região, a estimativa é de que 940 mil islâmicos vivam na região na data.

UM DOS PONTOS DE ENCONTRO mais conhecidos da comunidade palestina em São Paulo é o Al Janiah. O restaurante foi batizado com o nome do vilarejo onde nasceram os pais do dono do estabelecimento, o brasileiro Hasan Zarif. Antes em um pequeno salão em L próximo ao Vale do Anhangabaú, o Al Janiah atraiu tanta clientela que reabriu em um espaço três vezes maior no bairro do Bixiga.

Por muito tempo, a cozinha esteve sob os cuidados de Raame Othman, filho de palestinos que fugiram de Safed em 1948 e se instalaram no campo sírio de Sbeineh. Othman deixou a Síria em 2011 e morou por três anos no Líbano, sem que outro país aceitasse seu passaporte sírio-palestino. Foi então que resolveu seguir os mes- mos passos de seu irmão, Mohammed, no Brasil. Depois de trabalhar duas décadas como cabe- leireiro, o palestino de 37 anos descobriu suas habilidades gastronômicas pela absoluta neces- sidade de se sustentar. “O povo brasileiro tem o coração aberto para estrangeiros. E gosta de comida árabe”, diz ele no dia em que me recebe na sua aromática cozinha, enquanto tempera e molda as kaftas que depois vão para a grelha. “Pratos como homus, tahine e falafel são tra- dicionais não só na Palestina mas também na Jordânia, na Síria, em parte do Egito e do Iraque. É o nosso cartão de visita.” O sucesso do negó- cio motivou a vinda da mãe, no ano passado. E, em abril deste ano, Othman casou-se com a conterrânea Rahaf e abriu um novo restaurante, o Majâz, em sociedade com o irmão e o primo.

Quando o trabalho não vai bem, o ambiente da religião pode ser positivo para muitos desses novos imigrantes. Ao chegar ao Brasil, a família Al Jammal ocupou um apartamento no bairro de Interlagos. Porém, depois de dois meses, o dinheiro acabou e as dificuldades começaram para Muna Darweesh e Wessam Al Jammal, que viviam então a 20 quilômetros do Centro da cidade e sem o domínio da língua portuguesa.

Até que, certo dia, na Mesquita Santo Amaro, em uma celebração ao nascimento do profeta Maomé, eles souberam da Mesquita Brasil. Dias depois, nesse centro islâmico situado no bairro do Cambuci, Muna e Wessam descobriram o programa de assistência da Sociedade Beneficente Muçulmana, que passou a financiar os custos de moradia da família. A filha mais velha, Jawa, hoje com 10 anos, foi matriculada na Escola Islâmica Brasileira, onde aprende português, árabe e inglês. Na época, os gêmeos de 7 anos, Mohammed e Abdullah, e o caçula Taim, de 6, ainda iam a uma creche municipal. Por chegarem ao Brasil com menos de 5 anos, os três já possuem cidadania brasileira. Muna, Wessam e Jawa têm visto permanente, válido por nove anos.

Muna decidiu então transformar em profissão o gosto pela cozinha típica, adquirido na infância. Ela e o marido passaram a vender doces e salgados na frente das mesquitas. Durante a semana, iam ainda para as ruas de comércio popular 25 de Março e Santa Ifigênia. Logo o casal atraiu a atenção da Adus, uma organização que presta assistência aos refugiados. Uma página no Facebook [Muna – Sabores & Memórias Árabes] rendeu exposição e, logo, mais clientes. Muna e Wessam abriram uma empresa e agora cozinham sob encomenda, para festas, eventos e oficinas de culinária árabe. A renda obtida bastou para que eles conseguissem se estabelecer no Cambuci, mesmo com o fim do acordo de financiamento da Mesquita Brasil.

Muna já consegue ter certeza de que os anos na capital cosmopolita mudaram o jeito de ser da família. “Misturamos a nossa personalidade muçulmana com a dos brasileiros”, observa a cozinheira e professora. “Na Síria, a situação era diferente, mais tensa. Aqui, é possível manter a religião e os costumes sendo mais liberal. Como mulher, eu posso viver com mais liberdade.” 

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